10 de dezembro de 2010

Romance de uma conspiração

"Pedro nunca soubera a razão da separação do pai e da mãe, embora com a idade fosse compreendendo. Talvez lhe tivessem querido esconder alguma coisa capaz de o magoar. E ficou assim. O pai deixoude vir para casa. A mãe não tomava a iniciativa de explicar a situação e o Pedro não fazia perguntas. Ou talvez ele próprio se escondesse da negação de um desgosto que desorganizava profundamente a sua vida afectiva e emocional. Passado um mês ou dois, o Pedro começou a sair com o pai, conheceu a melancólica parte da casa que o pai habitava, na Bica, cedida por um amigo emigrado em França, e percorreram ambos uma via-sacra de lugares de Lisboa: o Jardim Zoológico, o Campo Grande, o Jardim da Estrela, matinés infantis, depois matinés de aventuras, visitas a museus, outra vez o Zoo, o Aquário Vasco da Gama, no Dafundo, passeios a pé, tendo sempre a deslumbrante cidade branca como cenário dos dias, cidade imprevista ao virar de cada esquina, cidade inesperada.
- E aquela loja, o que é? - perguntava o Pedro, que ganhara com o pai o prazer simples da descoberta.
- A Havaneza - respondia o pai. - Ali à porta, Ramalho Ortigão fumava o seu charuto. Lembras-te quem foi o Ramalho Ortigão?
- O das Farpas - respondia o Pedro - E aqui?
- A Igreja dos Mártires. Aqui vinha a Luísa, personagem do Eça de Queirós, para a sua «devoçãozinha». Lebras-te quem foi o Eça?
- O outro das Farpas - respondia o Pedro - E aqui?
- A livraria Bertrand. Aqui à porta, até há pouco tempo, parava o Aquilino Ribeiro. Está vivo, com setenta e muitos, ainda escreve e dá muito que fazer à Censura.
- E encontravam-se todos no Café Chiado para tomar um cafezinho - concluía, com uma risada, o miúdo Pedro, que, por via do pai, tratava as letras por tu.
Atravessavam a Rua Garret, do outro lado, no Café Chiado - o pai dizia que consava que estaria para fechar -, o Pedro pedia um sumo e o pai uma bica, enquanto cumprimentava e respondia a cumprimentos de muitos dos que entravam e saíam.
- Este quem é? - perguntava o Pedro, em voz baixa.
- O O`Neill. Alexandre O`Neill. Grande poeta.
E declamando:
- «Os domingos de Lisboa são domingos
Terríveis de passar - e eu que o diga!»
- Ó pai... cala-te - sussurava o Pedro, olhando de soslaio em todas as direcções, com a vergonha a dar-lhe cor às faces.
Eram assim os «dias do pai», mas o melhor era o companheirismo e alguma transgressão, certa irreverência que representava o sal da vida para um miúdo habituado a uma rotina sem qualquer rasgo de imaginação, de aventura, de romance ou de simples afecto."

Excerto do livro "Romance de uma Conspiração", de João Paulo Guerra. (Edição Oficina do Livro)

1 comentário:

Maria disse...

Curiosidade aguçada. Mesmo...
:))))