19 de agosto de 2009

Boa ficagem, Raul!

Os pormenores mais desimportantes nos episódios dos dias comuns não lhe passavam ao lado, nem o sentido das datas que ficaram na História. Em tudo o Raul queria estar, por curiosidade, por entusiasmo, por simplesmente achar que a vida é isso, estar.
(...)
Todos os dias, garantiu-me, precisamos de levar para casa um pensamento novo, uma palavra inventada. A primeira que lhe ouvi, à porta do Pátio Alfacinha, numa festa de Santos de Junho em 1989, foi «boa ficagem» ao arrumador de carros que desejava boa viagem de volta.
Tinha o absoluto sentido da vida como espectáculo e da celebração dos acontecimentos como expressão de vida. Uma outra vez, tinha havido em Lisboa, em cerimónia oficial, um aperto de mão entre líderes angolanos para a Paz. O Raul achou insuportável que a vida corresse igual a sempre nessa hora e nesse dia, como se nada daquele gesto tivesse a ver com as pessoas na cidade. Telefonou para o Patriarcado a pedir que o momento formal do gesto fosse celebrado pelos sinos das igrejas de Lisboa a proclamar a boa nova. Fomos para o Castelo de S. Jorge, esperando o som. Existiu sim, não tão intenso como tinha sido desejado. Resta uma fotografia de nós os dois, com a cidade e o rio por cenário, a garantir-me que o secreto ritual se cumpriu.
(...)
Não é verdade que tantas vezes, em público, ele disse que mais fácil é fazer chorar do que fazer rir? Com ternura, sem imagens de brutalidade, sem traço primário de segundos sentidos, sem piadas intestinais, como chamava ao palavrão, à grosseria. Lembrava ele, e por isso causando pasmo a quem o ouvisse, que no seu tempo de Parque Mayer, só nas sessões dos dias de Carnaval se podia pronunciar a palavra «merda». O humor do Raul era terno e atravessa as gerações.
Em face das infinitas pessoas que agora pronunciaram o seu nome, e ao longo dos rituais da morte, penso do Raul que é um homem que muito amou e foi amado. Pelos mais simples e anónimos, pelos desconhecidos, pelos drogados e pelos bêbados, pelos cachorros e pelas crianças. Aos menos importantes pestava atenção, às crianças abria os braços com o corpo inclinado para trás, dos cachorros não tinha medo, dos bêbados aturava os caprichos, para os drogados tinha sempre uma moeda. E agora dou por mim a achar que só o Raul tirou do anonimato tantas e tantas pessoas que dele guardaram uma palavra, um encontro, que lhe prestaram um serviço fugaz, que com ele trocaram uma frase, por acaso.
(...)
Dizia palavras sagradas como Liberdade. Praticava a cidadania. Nunca o vi sequer em transgressão no trânsito, porque para ele a integridade era fundamental. Era tão doce e resignado como doente, nas vezes todas que esteve internado nos hospitais. Os médicos choram por ele. E quem o tratou sabe como percebeu a dimensão superior do sofrimento.

Extracto do texto de Leonor Xavier * sobre Raul Solnado, publicado na revista Visão de 13-08-2009.


* Jornalista, escritora, companheira durante 15 anos do actor agora falecido e autora da biografia Raul Solnado - a Vida não se Perdeu

1 comentário:

Princesa Isabel disse...

Um excelente actor! Ainda me lembro como me divertia o sketch da "Guerra" quando passava nas noites de rádio do programa "Quando o Telefone Toca".
É que eu já sou fóssil... na minha infância os serões de família passam-se em volta da rádio.
A televisão era só no café, à noite e ao fim de semana.
Ah pois é!!!
Besos Guapo!