16 de julho de 2008

Da latrina ao mictório

Eis como funciona a Internet:

Recebo um mail no meu hotmail: fulano x quer adicioná-lo como amigo no Hi5. Como não conheço o fulano, e a única foto que consigo ver é do Estádio de Alvalade, recuso. Já que estou no Hi5, deixa lá ver as novidades. A Sónia Bértolo actualizou o seu estado, entro na página para saber dela e vejo que escreveu uma página do seu diário. É lá que dou de caras com este texto (é longo, mas vale a pena):

6.1.08
O diálogo

Olá. Viva. Como vais? Bem, obrigado, e tu? Tudo em cima. E então, que fazes por aqui? Isso pergunto eu! Eu, olha, vou comprar pão. Ah, muito interessante. Mais ou menos, há coisas mais interessantes para se fazer. Como o quê, por exemplo? Bom, muitas coisas. Mas que coisas, pergunto-te. Ora, por exemplo coisas que não me sinto à vontade para referir numa conversa com uma pessoa que não conheço. Que não conheces?, mas como assim? Então, eu não te conheço de lado nenhum, tu é que vieste meter conversa comigo de repente, como se já nos conhecêssemos previamente. A sério?, pensei mesmo que te conhecia. Que me lembre, não. De facto, não me lembro do teu nome. É Justino. Chamas-te Justino? Sim. Que nome mais estúpido. Não sei, já me habituei a ele, não o acho estúpido nem belo nem nada, existe simplesmente, como uma pedra que vou pontapeando na rua. Epá, mas tu és filósofo? Não. Pareceste, agora, com esse discursozinho. Ah, mas disso a culpa não é minha. Pois, eu sei, é do gajo que está a escrever o nosso diálogo. Pois. Na verdade isto é uma vida muito triste. Porque não é vida. Exacto. Limitamo-nos a debitar o que o gajo quer que a gente debite. E isso é estúpido. Exacto. E não tem lógica, é como se não existíssemos por nós próprios. Mas não existimos mesmo, só existimos quando ele nos escreve. Pois é, e ainda por cima escreve mal, limita-se a apontar o que dizemos; isso é o que fazem os amadores. De facto, dessa forma o leitor nunca saberá que enquanto digo o que digo estou a coçar o traseiro às escondidas; isso pode dizer muito sobre a verdade por detrás do que digo. Estás a coçar o traseiro às escondidas? Estava. Curioso, não reparei. É normal, tu só reparas no que ele quer que repares. Pois é. Somos meros peões na ponta dos dedos de um gajo triste vestido de pijama e sentado em frente a um computador, não é? Sim, na verdade nem chegamos a existir. Isso é muito deprimente. É mesmo, somos meros produtos da imaginação de alguém. Não consigo aguentá-lo, sinto-me a enlouquecer! Não sentes nada, não sejas mariconço; só te sentes enlouquecer porque ele quer que enlouqueças. Pois é, e eu sou mais forte, tenho que ser mais forte. Bom, no caso dele não serás mais forte; ele é um escritor amador, medíocre, só com os escritores a sério é que as personagens ganham vida própria e escrevem elas próprias os diálogos e as estórias, pelo menos é o que eles dizem nas entrevistas. Pois é, e este gajo é um fraco não é? Provavelmente, sim. Então nunca existiremos por nós próprios, ele manipular-nos-á totalmente enquanto este texto não acabar. Pois. Epá, que deprimente, estou ansioso que este texto acabe. Mas se o texto acabar tu e eu deixamos de existir. É? Claro, nós só existimos enquanto ele estiver a escrever-nos. Mas também dizem que existimos quando nos lêem, dizem, aliás, que a literatura é isso. Mas isto não é literatura, e mesmo que fosse ninguém chegaria a este ponto do texto, já viste o diálogo que o gajo nos pôs a ter?, ninguém chegou até aqui. É escandaloso, este gajo odeia-nos. E nós odiamo-lo a ele. Não odiamos nada, amamo-lo! Só dizes isso porque ele quer que digas isso. E tu também, só dizes isso porque ele quer que digas isso! Bom, não nos exaltemos. Sejamos homens sérios. Homens sérios? Mas eu sou uma criança, tenho 10 anos, e tu não és um homem, és uma mulher! Sou uma mulher? És. E sou bonita? Não sei, tenho 10 anos, ainda não sei bem avaliar esse tipo de coisas. Este gajo odeia-me, pôs-me a conversar com uma criancinha quando o que eu queria era um homem a sério. E eu também não estou muito melhor, deixa lá, o que eu queria mesmo era estar a jogar playstation. Ai, mas isto nunca mais acaba? Já estou cansado. Cansada. Pois, cansada. Mas quando ele deixar de escrever é como se morrêssemos. Se calhar é por isso que ele ainda não parou, mesmo quando já deu para perceber perfeitamente que isto não vai a lado nenhum. Exacto, ele ama-nos, e não nos quer ver partir. Ele ama-nos?, hmm, será que ele é giro? Acho que não. Como é que sabes que não? Não sei nada, ele é que sabe tudo, é ele que está a escrever o que digo. Já sei porque é que ele não acaba o texto, é porque está à espera que chegue a apoteose, todos os textos acabam assim, com uma apoteose, mesmo que disfarçada de anti-climax. Todo este texto foi um anti-climax, pelo que só uma apoteose verdadeira o salvaria. É verdade. Olha, e se a gente fizesse amor? Estás parvo, tu tens 10 anos! Exacto, com sorte seríamos descobertos e serias presa e apareceríamos no telejornal. Seria apoteótico, de facto. Uma apoteose à portuguesa. Ai, quero. Então pronto, começa lá por chupar. Ai, que pila tão pequena, isto não dá para fazer nada. Não sejas mentirosa, que eu já tenho 16 anos. 16?, então não eram 10? Ele fez-me mentir, tenho 16 e uma piroca já bem decente. Mas assim se fizermos amor já não é tão escandaloso. Pois não, mas ainda irias presa e ainda apareceríamos no telejornal. Ai, quero. Vamos lá a isso então. Mas depois se o texto acaba aqui como é que os leitores sabem se chegámos efectivamente a aparecer na televisão? Epá, pois é, nunca poderão saber. E dessa forma lá se vai a apoteose. De facto. Isto é muito complicado. Diz-lhe que escrever é demasiado complicado para ele, não tem talento suficiente. Olha, ó tu do pijama, escrever é demasiado para ti, não tens talento suficiente. Este texto é bem prova disso. É, sem dúvida. E o pior é a falta de substância que nos atribui, vê-se bem que, desde o início, o objectivo deste texto é a auto-ironia baratucha, nós - as personagens - estamos aqui apenas para servi-la, não temos qualquer dimensão psicológica. Já sei, e se nós o matássemos? Que ridículo, nós não podemos matá-lo, ele existe, nós não. E se nós o chateássemos muito, de forma a ele ficar tão irritado que deixasse de escrever e nos deixasse em paz? Epá, isso é boa ideia. Ó tu do pijama, és um estúpido, um cocó, não escreves nada de jeito, és um merdas e um falhado e muito provavelmente nunca ninguém para além do teu círculo familiar saberá o teu nome completo. Epá, isso é que eu já não admito. Quem foi que disse isto? O 'epá, isso é que eu já não admito?'? Sim. Eu não fui. Eu também não. Foi ele, então, só pode! Que falta de profissionalismo, a intrometer-se na sua própria ficção. É um amador, nunca será mais do que isso. Nem nunca acabará uma licenciatura na faculdade, já viste?, vai em quatro incompletas. É lamentável. Patético. És patético, ouviste? Agora é que estou mesmo irritado, vou acabar com isto já! Vá, acaba, acaba se tens coragem. Não tem coragem, o menino. Tenho sim! Tens?, então acaba isto agora, vá, quero ver se consegues. Ele não vai acabar isto agora, acabaria num anti-climax que não é apoteose nenhuma. Mas, de qualquer maneira, ele é um mau escritor, nunca conseguiria escrever uma boa apoteose. Conseguiria sim! O quê?, estás do lado dele agora? Estou! Então vou matar-te. Então mata; se for necessário morrer por ele, morro! E pronto, matei-te com uma bala do meu revólver, agora viverei o resto da minha vida com o peso da culpa a assombrar todas as minhas acções; ai, esta dor que me começa a dar no peito, é imensa, Só poderá ser isso, ele está a matar-me. Que vergonha, é um amador, um amador! Só um amador mata as suas personagens no final para disfarçar a falta de engenho na criação de uma verdadeira e substancial apoteose. Ai, que dói, dói, dói. A dor é imensa, sinto que esta minha frase é a última.

Dirijo-me ao blog para ler mais. Parece que o Apanhador no Centeio virou mictório luzidio. Promete...

1 comentário:

Anónimo disse...

Ena pá. Agradeço. Mas não esperaria grande coisa do mictório.
A Sónia é minha prima. Muito boa moça.