30 de maio de 2007

Espelhos (II)

«Peço desculpa pela lentidão do processo. Trata-se de um fingidor refinado e eficaz. Da pior espécie, engana-se a si próprio e depois fala “verdade” aos outros. A análise (…) será feita ao meu ritmo. Não o deixarei escapar por entre os dedos para satisfazer a vossa preguiça de espectadores de telejornais e respectivos rodapés. E não valerá a pena espreitar o fim – a haver crimes, o culpado não é o mordomo e nenhuma acusação foi deduzida. Se alguém está com pressa, aconselho-lhe as revistas cor-de-rosa dos cabeleireiros e das salas de espera dos consultórios médicos. Os títulos contam a história toda. Quando não a aumentam…»

«Sublinho o facto porque minha Mãe, percebendo o fosso existente entre a timidez do filho e a distracção do marido, pensou que a adolescência do rapaz não medraria sem convívio mais estreito com o progenitor.
(…) minha Mãe fez sugestão arriscada para quem conheça o mundo da bola, o que não era o seu caso, pese embora o benfiquismo acérrimo que me transmitiu. Estádio das antas, domingo à tarde. Eu e o velho, antigo júnior do FCP, (…)
Porto-Benfica, nos tempos áureos do Eusébio. Ainda me atrevi a sugerir que evitássemos a tribuna dos sócios, mas o velho retorquiu, sábia e economicamente, que para alguma coisa pagava quotas. O Eusébio fez o resto. Puxou a culatra atrás e mandou um balázio para dentro da baliza dos Andrades, nesse tempo ainda não baptizados no fogo do Dragão. “Esta já lá mora”, pensei eu, calado como um rato e imitando com perfeição hipócrita o desalento à minha volta. Julgo que cheguei ao ponto de rosnar um “merda!” artístico. Não sou isento, mas acho que o desempenho me tornava um sério candidato ao Óscar de melhor actor portista do ano.
Não é que meu Pai deitou a perder tão magnífica demonstração de instinto de sobrevivência levantando-se e aplaudindo? Fiquei petrificado. Surdo é que não, o tipo da esquerda franziu o sobrolho e descarregou a frustração naquele traidor, mais à mão do que o habitual Cristo trajado de negro – “seu ganda filho-da-puta, você é mesmo sócio do Porto ou enganou-se na bancada?”.
O velho ficou demasiado surpreendido para se perceber do gelo fino em que patinávamos. Respondeu-lhe, beatífico, estar ali para aplaudir o bom futebol de ambas as equipas. A afirmação era tão extraordinária – cheguei a recear uma dissertação sobre os ideais do Barão de Coubertin… - que nos salvou de um enxerto de porrada. O outro encolheu os ombros e murmurou entredentes um “este caralho é doido”. (…) Viemo-nos embora antes do fim do jogo. Ele nunca mais voltou a pôr s pés num estádio e minha Mãe ouviu, perdida de riso, a descrição do fracasso de mais uma ideia para aproximar os seus homens.»

«Não gosta de recordar. O dia em que o pai desfechou um sarcasmo a mais no consultório. Vi-o fechar com estrondo a porta do gabinete e pela primeira e última vez gritar ao velho. Dizer-lhe com desespero que sem dúvida cometia erros, mas pelo menos não ficava refastelado numa poltrona a criticar. (…) E não deu hipóteses de resposta ao pai, varado perante um descontrolo total que o escandalizava, os cavalheiros não falam assim. De cavalheiro não teve ele nada. Antes de sair, afónico mas com raiva intacta, deixou cair a pior das pulhices – “o bisavô teria vergonha de ti”.
E eu, que sou um profissional, asseguro-vos que cena tão violenta e lamentável albergava potencialidades insuspeitas para uma relação como a deles. Bastaria que continuassem a discussão, com alguma economia de decibéis e maior participação do pai. Mas ao jantar ambos fingiram que nada acontecera, cúmplices na desculpa – poupá-la a ela. Em verdade vos digo: os amores bloqueados não se podem dar ao luxo de perder tais oportunidades.»

«Razão tinha o pai ao dizer que vivera pouco. Sobretudo transgredira pouco. Não o fez mais tarde. Mas sabia-o. Tornou-se um conformista contrariado. Quem transgride, actua; opõe-se; paga; vive. Ele esperou. A felicidade pela mão das mulheres, a sageza pela do bilhete de identidade. Sem resultado.»

Pr. Júlio Machado Vaz em "O tempo dos espelhos"

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