6 de janeiro de 2010

O Albatroz Azul (II)

- Os senhores conhecem todas as sabedorias - repetiu Seu Zé Honório, passando a andar e gesticular pela sala, os ouros dos seus adereços chamejando em torno dele os olhos muito vivos. -As sabedorias se desenrolam partindo da primeira. A primeira é que é a chave, as outras saem dela conforme a ocasião, bastando ouvir a realidade sem meter no meio o que se diz e o que se quer, porque a realidade pode ser justamente o contrário do que se diz ou do que se quer. O que se diz é que é melhor prevenir que remediar. Eu digo que pode ser, de acordo com a situação. Geralmente é melhor ser herói, apagando o incêndio e salvando gente do fogo, do que ser somente cuidadoso e nunca deixar que venha o incêndio. Todo o mundo se lembra do herói, ninguém se lembra do cuidadoso; o herói abiscoita todas as recompensas e o cuidadoso tem sorte se receber um abraço, porque só se conhece o fogo depois do incêndio. E dessa sabedoria os senhores também tinham conhecimento, só não tinham ainda pensado da forma mais apropriada, esqueceram a realidade. (...)

- (...) Confesso que já trabalhei para outros, mas isso era porque ainda não tinha aprendido a agir conforme a realidade. A realidade diz que quem quer subir na vida deve trabalhar sempre para si, mesmo que seja empregado de outro. E também é uma coisa que se deve dizer o contrário do que se faz e fazer o contrário do que se diz, o que de novo, aliás, mostra que se deve prestar atenção no que o sujeito faz, não no que ele diz.

(...)

E, finalmente, a mais benfazeja felicidade, a felicidade de ouvir música, o supremo dos prazeres do espírito, que desnecessitava saber ler ou entender línguas estrangeiras, mas ia direito à alma, transportando-a para a proximidade do paraíso. Entre todos aqueles aparelhos que manipulava com destreza, o de que tinha mais ciúme era a sua vitrola, que lhe proporcionava o que, se não fosse por ela, só teria se vivesse na Europa. Nada disso, a Europa vinha pelos ares, na hora e no jeito que ele queria.

Excerto do livro "O Albatroz azul", o mais recente do escritor brasileiro João Ubaldo Ribeiro.

Acabo de ler este fantástico livro, e mais uma vez fico rendido, como quase sempre acontece quando se trata de escritores brasileiros ou africanos. Há neles uma simplicidade que é tudo menos simplória, e que nos transporta num universo mágico de humanidade. Adoro as suas personagens e o seu ritmo.

2 comentários:

Leticia Gabian disse...

João Ubaldo é baiano, nascido na Ilha de Itaparica.
É mesmo daqueles que do simples vão ao profundo das coisas e das gentes.

A CONCORRÊNCIA disse...

E viva a simplicidade (sem ser simplória)!