2 de abril de 2008

Passo a palavra

(...) Gosto de dizer que a ética é a história das minhas inquietações. Se a ética não é inquieta, se não causa desconforto e achamos que há situações lineares em relação a tudo, não percebemos o enorme dilema de decisões desta natureza (eutanásia) em relação à pessoa singular que está à nossa frente.

(...)

Leio muita ficção, porque acho que os relatos ficcionais nos esclarecem. A filósofa americana Martha Nussbaum chamou-me a atenção para uma coisa que me impressionou muito: as grandes questões éticas e filosóficas são tratadas com mais vigor, realidade e conhecimento nos romances do que nos tratados de Filosofia. Aprende-se mais sobre ética médica lendo "A Morte de Ivan Ilitch", de Tolstoi, ou sobre a velhice com os útilmos romances do Philip Roth. Ficamos mais esclarecidos sobre a experiência das vidas, como o Fernando Gil gostava de dizer que eu tinha.

Experiência das vidas?
Todos nós temos isto de extraír lições do convívio quotidiano, de mergulhar na profundidade das pessoas e no sofrimento. E alguma da ficção faz isso de uma forma admirável. Não ler ficção de qualidade é um handicap, tal como não ler poesia. O rigor da imagem, da palavra, da descoberta da palavra na leitura da poesia são fundamentais.

Já disse que o seu mote é uma frase de Vitorino Nemésio: «Li muito, li tudo para o que desse e viesse.» Sente-se um homem lido?
Repare como essa frase contraria a teorização da pedagogia moderna, em que querem objectivos, comportamentos, programas, axiomas como «só se pode ensinar aquilo que pode ser avaliado». Perde-se o valor da Educação na perspectiva nemesiana - o saber livre, o saber gratuito, o saber por saber - e fica-se nesta história de saber porque vão perguntar-me para ver se sei. Isto quando a práctica médica está sempre a destapar-nos a ignorância.

Excerto da entrevista concedida por João Lobo Antunes, neurocirurgião, à jornalista Rosa Ruela, publicada na revista Visão de 27-03-2008.

1 comentário:

A CONCORRÊNCIA disse...

Amigo Charraz, convenhamos que não há qualquer estimulo por parte daqueles a quem deveria caber a educação, porque eles próprios já por sua vez possívelmente não foram estimulados nesse sentido, ou porque as múltiplas ofertas a que estão vulneráveis os afastaram noutros caminhos. Assim é díficil transformar palavras em algo interessante, quando o interesse de quem estuda hoje em dia é (e dos próprios pais) é simplesmente por em causa os próprios direitos do professor como ser humano ...

Lambidelas Amigas