1 de fevereiro de 2008

A minha Vila

Eu nasci em Lisboa, na maternidade que, creio eu, mais portugueses deu ao mundo. Assim que tive ordem de saída, vim para a vila que me viu crescer, e onde resido há quase trinta anos.

Durante 25 anos morei na Praceta António Raposo Tavares, dois quarteirões abaixo da estação de comboios que todos os dias, desde há muitos anos, vê partir e chegar a grande maioria dos seus habitantes, a caminho dos seus empregos em Lisboa.

A Praceta é um dos lugares do meu imaginário. Nela brinquei horas a fio, com uma liberdade que hoje não passa de uma saudosa lembrança. Assistiu às heróicas lutas dos moscãoteiros contra inimigos disfarçados de espigas, foi testemunha de verdadeiros julgamentos que fariam inveja a muitos tribunais, foi palco de concursos de televisão sem câmaras e campo de grandes jogatanas de futebol. Ali cometi a proeza de dar cem voltas ao meu prédio a correr, com todos a desistirem antes das cinquenta (a minha teimosia manifestou-se desde muito cedo), ali recebi a medalha de prata (uma carica espalmada na linha do comboio) do primeiro e único campeonato de Fórmula 1 em caricas, ali dei os meus primeiros concertos ao vivo!

Hoje já não moro na Praceta, mas meia dúzia de quarteirões abaixo, na Rua D. Manuel I. Já não estudo na Escola Primária onde aprendi a ler nem na Escola Preparatória Padre Alberto Neto, onde fui rei e senhor, campeão indiscutível de futebol 5, numa equipa que vai ficar para a história. Eu, o Carlitos, o Miguel, o Manel Felix, o João Miguel, o Bruno Canina, o Luis...

Hoje já não ando no comboio que foi a minha primeira biblioteca, por quem tanto esperei mas que nunca me faltou. Agora enfrento todos os dias o IC19, que há muito perdeu o seu ar de Adamastor.

De vez em quando ainda visito a Praceta, cumprimento a D. Natalina na varanda, aceno ao Sr. Reinaldo na Janela e dou os Bons Dias à Tina e ao Tavares. Agora já só brinco em casa, mas continuo a comer os melhores pregos do mundo no Arco Íris, mesmo em frente à estação. E sempre que posso, subo ao quiosque do Chico para comprar o jornal e dar dois dedos de conversa.

No outro dia reparei que o Sr. Bernardino já não existe. Isto é, que eu saiba o homem ainda está vivo e de saúde, mas o supermercado onde a minha mãe me mandava comprar fiambre, contra a minha vontade porque pedia 100gr. e trazia 200, agora é uma loja chinesa! E sabem onde é que os chineses estão a morar?! Na casa da Cristina e do Sr. Zé, os pais do meu grande amigo Gouveia, que se mudou para a rua a seguir à minha!

A minha terra chama-se Rio de Mouro, e anda nas bocas do mundo pelas piores razões. Parece que a semana passada aqui foram assassinados a tiro dois miúdos, numa luta de gangs!! Eu não dei por nada, agora já só brinco em casa. Mas dói-me o coração ver que os miúdos hoje já não jogam à bola, já não tocam guitarra na Praceta, preferem matar-se uns aos outros.

Que se matem. Que se esfolem. Mas deixem Rio de Mouro em paz, que eu quero brincar…

10 comentários:

zmsantos disse...

Como sempre, conseguiste tocar na alma de quem lê os teus escritos. E neste, particularmente.
Neste, porque também eu cresci, assim como tu, num cantinho que simbolizava um mundo de imaginação e aventuras, num tempo precedente às máquinas electrónicas. Um tempo feito de cumplicidades e de acordos de cavalheiros entre miúdos de 10 anos, alianças, que ora quebradas se pagavam em berlindes e cromos da bola.
Hoje, esses domínios de herois, de competição pela liderança da malta da rua, já não existem, e as quebras de promessas ou traições pagam-se com a vida, na ponta de uma navalha.

Obrigado por me teres recordado amigos, vizinhos, sítios, sons e cheiros, à tanto tempo adormecidos.

zmsantos disse...

...hà tanto tempo... e não ...à tanto tempo...

(tenho que renovar a licença do corrector ortográfico EDU SALGUEIRO o mais depressa possível.

Cravo a Canela disse...

O "Mãozinhas" já lê isto, senão levavas já na cabeça... "há tanto tempo" e não "hà tanto tempo"...

:P

Cravo a Canela disse...

E acrescentava, "já não lês isto" e não "já lê isto"....

zmsantos disse...

Posso acrescentar, "já não lê isto" en vez de "já não lês isto"?

Anónimo disse...

Caros AMIGOS:
Leio sim senhor, só não comento. Quer dizer...não comentava mas hoje vi-me forçado a fazê-lo, não só para responder às vossas provocações, benignas eu sei, mas também para demonstrar ao Charaz que as suas suposições estão erradas. Leio sim senhor, só não comento.
Por defeito, acho eu, tenho o maldito hábito de escrever da mesma forma que falo (do verbo falar), ou seja, com o coração mais perto da boca do que devia, neste caso, mais perto do teclado.
Isso leva-me, quase sempre, a sentir-me obrigado a dizer, realmente, o que penso. Ora, nem sempre o que penso pode ser traduzido num conjunto de palavras inócuas que façam sentido. Não quero julgar ninguém nem quero que me julguem mas poderia ser interpretado como tal, logo... leio sim senhor, mas não comento.
Após este "pequeno" preâmbulo, resta-me reconhecer, mais uma vez, a excelência do texto do Charraz, uma qualidade a que, felizmente, nos tem habituado.
Não fiquem preocupados. Não me esqueço de, todos os dias, aqui vir dar uma espreitadela. Nem resisto. Mas não comento, ok?
Um grande e saudoso abraço...aos dois.

Anónimo disse...

Falei do texto mas esqueci-me de comentar (ou tudo, ou nada!) sobre o que o motivou. É triste, tens razão e não se vislumbra solução. Resta-te, suponho, a "consolação" de saber que esta geração, a que te referes, nada tem a ver com as que conhecemos e que conheceste. Não esmiucei a notícia mas não devo errar muito ao supor que a(s) etnia(s) envolvida(s) não é(são) oriunda(s) de Rio de Mouro! Não é xenofobia, é realidade.
Para desanuviar aqui vai uma "gracinha"!

karus amigus:
leiu sim senhor...soh naum komentu...... ke dize..................naum komentava mas hj vi-me forssadu a faze-lu...naum soh p responde as vossas provocassoes...benignas eu sei...mas tb p demonstrah au xaraz ke as suas suposissoes taum erradas...... leiu sim senhor...soh naum komentu......
por defeitu...axu eu...tenhu u malditu habitu d escreve da msm forma ke falu (du verbu falah)...ou seja...kom u korassaum + pertu da boca du ke devia...nesti kasu...+ pertu du tecladu......
issu leva-me...kase sempre...a senti-me obrigadu a dize...realmenti...u ke pensu...... ora...nem sempre u ke pensu podi se traduzidu num konjuntu d palavras inocuas ke fassam sentidu...... naum keru julgah ninguem nem keru ke me julguem mas poderia se interpretadeenhu komu tau...logu.................. leiu sim senhor...mas naum komentu......
apus esti "pekenu" preambulu...resta-me reconhece...+ 1x...a excelencia du textu du xarraz...1 kalidadi a ke...felizmenti...nus tem habituadu......
naum fikem preocupadus...... naum me eskessu d...todus us dias...aki vi dah 1 espreitadela...... nem resistu...... mas naum komentu...ok??!?!
1 grandi i saudosu abrassu..................aus 2......

Estas deambulações internetárias...

zmsantos disse...

Olha que alegria! E que saudades tinha eu deste querido amigo!

Abraço para ti e beijinho para a Manela!!!

Miranda disse...

Rogério, durante a leitura fiquei com um brilhozinho nos olhos, depois uma gota teimou em escorrer pelo meu rosto... e não tenho vergonha de o dizer!
É que, como sabes, a tua Vila é a minha Vila, a tua praceta é a minha praceta, o fiambre que compravas no Bernardino era cortado na mesma máquina do queijo que eu aí também comprava, a bola com que jogavas, foi a mesma dos desafios onde eu participava juntamente com o Paulo, o Zé, o João Paulo, o "Comuna", o Beto, o Fernando "pespo", efim... tudo isto existe, tudo isto é belo.
Hoje lembrei-me de tudo aquilo que é tão bom recordar.
Hoje voltei a ter 8 anos...
Obrigado, meu amigo.
Paulo Miranda

Anónimo disse...

As nossas memórias de infância distam tanto das actuais ... as que os miúdos têm e como as constroem ...

Eu, por decisão dos meus pais, passei os primeiros anos da minha infância em Abrantes, onde também ia a pé para a escola, onde brincava na travessa com o Luis, a Sara, o Pedro (que tinha por mim uma paixoneta que o levava a seguir-me até à escola primária todos os dias .... e que eu na altura detestava e fazia queixas veementes sobre tal atitude !!), com o Fernando, a Maria João e tantos mais ...

A vida corria a um ritmo mais tranquilo, menos alucinante, todos os cheiros, sons eram cultivados num espaço mais circunscrito, que apenas se ampliava à medida da nossa imaginação.

Hoje em dia guardo-os como "reliquias" no meu imaginário. A vida afastou-me de Abrantes, de muitas das pessoas com quem convivia. Curiosamente, mais tarde, voltei a cruzar-me e reencontrar-me com essas pessoas quando menos esperava e onde menos esperava.

Gostava que a mesma "inocência", a mesma tranquilidade que viviamos na nossa infância ainda fizesse parte do nosso dia-a-dia .... e que não mudássemos comportamentos salutares em detrimento de grupos gangs rivais que insistem em atingir os seus objectivos à lei da bala ou na ponta da mola ...

É a realidade dos nossos dias ... Como a contrarias e combater ? Todos os dias temos que descobrir uma forma nova de saber lidar com ela ....

Uma beijoca gd para ti, Charraz

Carol