17 de setembro de 2007

Lueji, O Nascimento de Um Império

- (…) E ainda mais eu, um artista incompreendido…Um tipo tem de se afogar em alguma coisa para esquecer que sou um falhado. Faço músicas fantásticas e ninguém aprecia, não entendem. Ou que é muito avançada, ou muito atrasada, ou então é uma síntese artificial. Faço músicas na casa de banho, para me divertir apenas e se as apresento, dizem sublime, é isso mesmo. Bolas! Já viste aquela canção, o Filho da Kitanda? Fiz aquilo de brincadeira, exactamente para gozar as canções em voga, quase copiando tudo o que de mau, de cretino, encontro nas obras dos outros. E ninguém percebeu que eu estava a fazer antimúsica, virou sucesso. Talvez porque o Aires Mestre lhe colou em cima um bom poema, não tem dúvida, é um bom poema.
- Como foi isso?
O Compositor sorriu. Mudou de posição nos pés da cama, com muito cuidado para não magoar a perna da bailarina.
- Estávamos num bar, já bem ganzados, onde haveríamos nós de estar? E comecei a trautear a música, acompanhado com a viola. O título eu tinha, o Filho da Kitanda. E ele chupava cerveja e dizia palavras, a voltar atrás, a colar e recolar, mamando as cucas pela garrafa. Uma hora depois cantávamos o produto já pronto, rindo de nós próprios. A música era uma porcaria e ninguém me vai convencer do contrário. Chegou o Anselmo, ouviu duas vezes, fez coro à terceira vez, disse é uma maravilha, o cretino! Copiou a letra para um papel e pediu autorização para a apresentar no próximo espectáculo. Estávamos tão chibados, o Aires Mestre e eu, que dissemos é uma merda mas está bem, só com uma condição, não revelares o nome dos autores, temos vergonha. O gajo do Anselmo tem bom ouvido, captou tudo direitinho, cantou-a na Tourada, foi um êxito, a Rádio passa aquele nojo todo o tempo e até querem fazer um disco. Como é que não vou me sentir incompreendido…
- Pode ser antimúsica, mas é perfeita.
- Também tu? Fico desiludido.
- O que interessa a maneira do criador criar? E mesmo a intenção? Colaste o que chamas o mau dos outros. Só que o colaste de tal maneira que o conjunto é genial. Desde quando o todo é o somatório das partes? E o poema? Feito com os copos, muito bem, a brincar. Mas um poeta é poeta mesmo a brincar. É uma linguagem nova. E quem houve a canção sabe que é a realidade duma geração. Esses homens que eram candengues e cresceram à volta, dentro dos mercados paralelos…a vender e a revender ou a acompanhar a mãe que vendia e revendia, a ouvir conversas só de montinho, a tentar enganar o freguês e a entrar em negócios de coisas roubadas, esses homens poderiam ser outros senão o do poema? Podiam acabar de outra maneira? Egoístas, individualistas, frustrados, marginais…Desculpa, Afonso, mas música e poema são geniais, até porque se não podem separar. Não há colagem, há arte.
Mabiala ouviu de cabeça baixa. Ainda não tinha bebido muito, ainda não tinha entrado na fase da teimosia. Só o hálito mostrava que consumira a tarde no bar, o que não era suficiente para ele. Ou o bafo de álcool já estava entranhado, mesmo ficando uma semana a beber água? De qualquer modo não insistiu.
- Ouve, Afonso, posso te desiludir e ser cretina como os outros. Mas se todos acham essa música é boa, não serás tu que estás enganado?
- Depende. Se toda a gente foi educada com má música, só pode gostar do medíocre.
- Sim, podia acontecer. Se estivéssemos isolados do Mundo. E não estamos, o Mundo hoje é só um.

Pepetela, em Lueji, O Nascimento de Um Império

1 comentário:

zmsantos disse...

A frágil fronteira entre o que consideramos bom, ou mau. As mil e uma maneiras de julgarem o que fazemos, ou o perigo de acordar na cama com mais uma vítima da globalização.