5 de junho de 2007

Espelhos (III)

«Primeiro aviso, desconfio que inútil – perco-me nas conversas. Já tinhas reparado? Acredito, num simples parágrafo caneta e espírito fogem nas mais diversas direcções. Tempos houve em que atribuí esse horror à linha recta a alguma anarquia criadora, borbulhante cá no fundo. Tivesse eu tempo livre e as histórias irromperiam como lava de vulcão, finalmente livre de obrigações burocráticas. Não era verdade. À medida que abrandava um pouco o ritmo de vida, sentia crescer um vazio embrutecido. Papel e computador à espera. E eu, bovino, brandindo o comando da televisão, a qual debitava lixo em quantidades industriais.
(…) Regressaremos a esta pré-reforma falhada noutra altura, mas digo-te que foi uma descoberta penosa verificar como escondia a minha preguiça por detrás de um ritmo alucinante de trabalho.»

«Gaspar, os últimos anos foram difíceis. O Avô Júlio morreu de morte lenta, que lhe apagou o cérebro antes do coração. Nunca me tinha ocorrido que tal pudesse acontecer, sempre lhe invejei a destreza intelectual.
(…) O Avô foi traído pela teimosia do coração, que não se importou de ficar sozinho em casa depois da alma partir e apagar a luz. Pelos quartos às escuras, em busca do seu homem, chamando-o, tropeçava a Avó Clara. Até ao dia em que decidiu imitá-lo. Também ela sobrevive a si mesma, o espírito já se juntou ao dele.»

«De repente, um caderno cheio dos desenhos que lhe invejo. Deve ser bom guardar connosco, à força de lápis, o que nos encanta os olhos.»

«Ainda não nasceste, mas tenho que te contar isto. O pai João telefonou. Esteve na Alemanha e foi o melhor numa entrevista de selecção, mas não obteve o lugar por ser “pouco agressivo e tímido”. Que mundo te deixo? Interessa menos o que se é e mais o que se parece, a nossa imagem ganha-nos em importância. O tio Guilherme fez um comentário assustador – “por todo o lado é assim”. Entendes a minha preocupação? Como te vamos educar? Como uma predadora? Fiel ao “salve-se quem puder”? Se o fizermos, mataremos partes de ti que não ressuscitarão. Importas-te de dar um salto aos sessenta? Olha para trás. Perdeste oportunidades? Acredito. Mas imagina a alternativa. Essas peles ásperas não se despem fora de portas ao fim da tarde, a tua gente agradece que não tenhas sido uma vencedora computorizada.»

«Como Guilherme, João tentava minora-lhe a angústia. E ele despediu-se a correr para não se desmanchar. Depois foi só consultar o conta-quilómetros e a namorada – chorou mais ou menos cem quilómetros. E diz que não esconde os afectos…Como se os rapazes o não conhecessem! Teria sido bem mais adequado encará-los de frente e dizer a verdade – estou na merda, mas isso não muda nada. Orgulho-me de vocês, fizeram o que não consegui. Nunca me perdoaria se achasse que tinham ficado por minha causa. Eduquei-vos para serem tão livres como o meu choro deveria ser. A saudade não é um remoque acusador, mas um abraço de boas-vindas antecipado.»

Júlio Machado Vaz em "O tempo dos espelhos"

1 comentário:

Uma vida qualquer disse...

"...Eduquei-vos para serem tão livres como o meu choro deveria ser..." tanto em tão pouco, fantástico.
Besos
PS: Porquê raio nunca consigo escrever a palavra de verificação à primeira?!