21 de maio de 2005

Lido e Aplaudido

Existe uma grande diferença entre dizer o que se pensa e fazer passar pela escrita as nossas ideias. O exercício de sintetizar e organizar as ideias que nos vão surgindo de modo a fazermos passar a mensagem pretendida nem sempre é conseguido. Daí que por vezes lemos opiniões de terceiro e pensamos "era mesmo isto que eu queria escrever sobre este assunto". Foi o que me aconteceu ao tomar contacto com o texto de Mario Vargas Llosa (escritor nascido no Peru, um dos mais reconhecidos escritores da América Latina) publicado no DNA (suplemento do DN) de 13 de Maio de 2005. O texto tem como título "O maior espectáculo do mundo", e tomei a liberdade de extraír alguns parágrafos para compartilhar convosco:

"(...) A personalidade carismática e enérgica, de grande comunicador e a coragem pessoal que João Paulo II mostrou ao longo do seu pontificado, devem ser tidas em conta, desde logo, assim como a rotundidade rectilínea das suas convicções, algo que atrai muitos mortais, pois dá-lhes segurança, exonera-os das corrosivas dúvidas e absolve-os de ter de eleger entre opções às vezes dilacerantes. Que outro, sobretudo se esse outro é alguém tão resoluto e claro como Karol Wojtyla, creia, pense e decida poe nós, é algo que não seduz apenas muitos católicos; trata-se de uma debilidade à qual é propensa uma boa parte da humanidade e não só entre os crentes, também ateus e agnósticos sucumbem a essa tentação.(...)
(...)Ora bem, a ideia de democracia de João Paulo II não era precisamente a que nós, muitos dos que nos cremos democratas, temos, e, para quem os âmbitos da religião e do Estado devem estar tão claramente diferenciados como o privado e o público. A ideia de um Estado laico e de uma religião confinada à esfera individual e familiar era intolerável para este Papa que nunca deixou de condenar com firmeza todas as medidas sociais e políticas que entrassem em conflito com os ensinamentos da Igreja, mesmo que se tratasse de disposições e leis aprovadas por governos de inequívoca origem democrática, respeitadoras do sistema legal vigente e apoiadas pela maioria da população.(...)
Esta concepção da democracia (a de João Paulo II) correspondia a um modelo ideal que, mais que democrata cristão, era exclusivamente democrata católico.(...)
O seu repúdio pela modernidade não respeitava apenas ao domínio económico. Era aínda mais contundente no que dizia respeito ao sexo e às relações humanas. Se, a partir do Concílio e do pontificado de João XXIII, os chamados católicos "progressistas" mantinham ilusões sobre um "aggiornamento" da igreja, que admitisse o controle da natalidade, que os sacerdotes se casassem, que a mulher assumisse funções sacerdotais, e ainda medidas como a eutanásia, os matrimónios gay e a clonagem de órgãos humanos, depressa descobriram que com João Paulo II a Igreja não só não faria a menor concessão em nenhum destes assuntos e, pelo contrário, retrocederia até às posições mais tradicionais e intolerantes. O paradoxo é que, esta regressão conservadora, em vez de acentuar as divisões numa igreja que se encontrava já muito dividida, parece tê-las cancelado por um período que podia ser longo. É uma das façanhas de João Paulo II: ter conseguido uma unificação, um cerrar de fileiras na Igreja católica que ninguém se teria atrevido a augurar há um quarto de século.(...)
Como não é concebível que uma sociedade progrida e prospere sem uma vida espiritual e religiosa, e, no caso do Ocidente, religião quer dizer sobretudo cristianismo, teria sido desejável que o catolicismo se adaptasse, como já o fez no passado quando as circunstâncias o empurraram a aceitar a democracia, as realidades do nosso tempo em matéria sexual, moral e cultural, começando pela emancipação da mulher e terminando pelo reconhecimento do direito à igualdade das minorias sexuais.(...)
Como explicar que um Papa com traços tão inequivocamente antimodernos seja chorado, venerado deixe tantas saudades em tantos homens e mulheres, dentro e fora da Igreja católica? Porque em país de cegos, quem tem um olho é rei. Nesta época de grandes naufrágios ideológicos, os antigos sistemas filosóficos que pretendiam substituír, ou completar, a religião como explicação do mundoe da história, e estabelecer normas para a convivência, o progresso e a justiça, caíram em descrédito total. Tudo isso se reflecte na mediocridade generalizada dos líderes políticos e a decepção que provocam o oportunismo e o cinismo de que os governantes mais conspícuos fazem gala. Neste contexto, o aparecimento de alguém tão claramente cheio de princípios na sua actuação, tão coerente e persuasivo, e tão dotado para a comunicação, preencheu um vazio e valeu-lhe uma imensa popularidade.(...)
É muito raro as ideias, as razões, conquistarem o grande público. Foram os gestos, as imagens, as emoções e as paixões que são capazes de despertar com a sua palavra e as suas obras, e, também, com a percepção, certa ou errada, de que detrás de tudo isso havia em quem assim actuava e pregava, um ser de excepção, o que fez de Karol Wojtyla um herói do nosso tempo.
Não sou crente e os assuntos do outro mundo nunca me preocuparam. Se esse mundo existir, talvez nele o magistério e as realizações de João Paulo II sejam proveitosas para as almas. Neste, temo que tenham deixado algo maltratada a cultura da liberdade."

Um texto notável que subscrevo quase na totalidade.

Rogério Charraz

1 comentário:

A Burra Nas Couves disse...

Um texto notável que subscrevo NA TOTALIDADE! Estamos demasiado educados a que nos digam o que temos que fazer. É mais confortável do que ser responsável pelo próprio destino.
Desculpa só agora comentar, mas o futebol nunca foi uma paixão minha, apenas um entretenimento como outro qualquer outro desporto, que aliás, sempre preferi fazer a dizer