23 de novembro de 2010

O bom inverno (I)

"A verdade é que, após vários anos a vaguear pelos arredores da literatura, não é impreciso dizer que me encontrava gasto. Sem ter dado conta, batera a todas as portas e tornara-me um assaltante profissional, intromentendo-me em todos os meios e apresentando-me a todos os trabalhos com idêntica disponibilidade: durante esses anos fui jornalista, revisor, tradutor, criativo numa agência de publicidade, escrevi prefácios e posfácios de livros, discursos de políticos de segunda e, numa altura mais complicada, criei menus de degustação para restaurantes e letras de canções para um cançonetista popular que plagiava os mexicanos."

(...)

" «Pensa bem», insisti. «Haverá coisa mais parecida com a representação que fazemos da morte - as ossadas, a caveira - do que o negativo de uma radiografia? A primeira que foi feita, à mão esquerda da mulher do tipo que inventou a maldita máquina, um tal de Wilhelm Rontgen - alguma vez a viste? É uma coisa assustadora, uma imagem mórbida. A primeira vez que entrámos dentro de uma pessoa e a fotografámos por dentro e o resultado é aquele. A própria morte, como disse a pobre senhora, que deve ter apanhado um susto tão grande que só não morreu dele para não ridicularizar a própria ironia.»
«É só um negativo», disse Nina. «Não representa nada mais do que isso.»
«Não é completamente verdade», argumentei. «Estou em crer que a ciência julgou, durante muito tempo, que poderia salvar não apenas o corpo, mas também a alma. E que a alma estava guardada algures dentro de nós, uma coisa qualquer que nunca ninguém tinha visto, uma luz ou um sopro, uma substância esquiva. Depois, a ciência avança e a primeira representação que nos oferece do interior do homem - onde, supostamente, reside essa tal alma eterna - parece uma coisa saída de um filme de terror. É, sinceramente, de se perder a esperança.»"

Excertos do livro "O bom Inverno", de João Tordo.

1 comentário:

Tiago M. Franco disse...

Também gostei. O enredo está muito bem contado, mas confesso que gosto mais de livros que questionem um pouco mais as coisas. Parece ser um livro a pensar numa adaptação ao cinema.