10 de março de 2010

Ó Pastorinha de vitral e bruma

A minha mãe diz que na altura em que eu era bebé lhe doía a boca de me dar beijos. Não me lembro deles mas alguma parte minha deve ter saudades desse tempo porque sinto a falta de qualquer coisa que não sei exprimir, qualquer coisa leve e doce, um contacto, palavras, cheiros, uma espécie de ninho de que eu fosse o ovo feliz, o ovozito de nada, pintalgado, minúsculo.
É curioso: agora, que ela tem noventa anos, olho-a e não a vejo com a sua idade, vejo uma rapariga, igual à dos retratos antigos, alguns mais antigos que eu, às vezes contente, às vezes séria, ainda menina, ainda adolescente, ainda jovem mulher.
Um desses retratos, não sei bem qual, foi tirado num fotógrafo que pôs uma cópia na montra. Ao passar pela montra, tempos depois, o meu avô não deu com ele. O homem da loja acabou por confessar tê-lo vendido a um estudante que se apaixonara por aquela imagem. Resultado: cena do meu avô ao fotógrafo e atrapalhadas explicações do sujeito que prometeu recuperá-lo. Semanas depois apareceu a devolver o papel, desfeito em desculpas, no medo que o meu avô o devorasse à dentada. Nas costas, a lápis, o rapaz escrevera uns versos de António Sardinha

Ó pastorinha de vitral e bruma
Que sobre mim a tua graça entornes

e, ao repetir estes versos, a minha mãe iluminava-se, de tão feliz. Nunca o disse mas estou seguro de haver sido o que de mais bonito lhe aconteceu na vida (o meu pai nem sequer lhe tocava ao entrar em casa) e que, toda a sua existência, este episódio a acompanhou, e acompanha aínda, como uma lâmpada secreta. De quando em quando recito-lhe poemas de António Sardinha

Seguem-te os alicornes mansamente
Pastando neve na montanha azul

e ela, de pálpebras descidas, a sorrir.
Este episódio, quando a minha mãe era pouco mais que uma criança, ficou-lhe para sempre na alma, e o tal estudante tornou-se como que o halo de um ideal que nunca chegou a viver. Trazia uma assinatura por baixo, contava ela, mas o teu avô apagou-a, e a lembrança da assinatura apagada ensombrecia-a. A voz tornava-se-lhe mais lenta
- Nunca soube quem era
e depois vieram muitos filhos, desgostos, o casamento com um homem difícil, meia dúzia de coisas boas, espero, e as palavras de António Sardinha a mostrarem-lhe o que devia existir e não viveu nunca:

Se eu te pintasse posta na tardinha
Pintava-te num fundo cor de olaia;
Na mão suspensa, nessa mão que é minha
O lenço fino acompanhando a saia

a minha mãe, depois de silêncios compridos, um
- Pois é
baixinho com um mundo inteiro dentro, cheio de tudo o que não sucedeu.
Seriam para mim, mãe, os beijo que lhe faziam doer a boca? Seja sincera, eu não me importo. Ou então, se calhar, só uma parte me cabia. A outra destinava-se a uma assinatura apagada pelo meu avô, um estudante que a ajudou a sonhar anos e anos

Deixa caír dos lábios de medronho
A perfumada voz do nosso sonho
Mas tão baixinho que só eu entenda

diante da injusta dureza dos dias.
Ao pensar nisto, sabe, acho que a compreendo melhor: o desejo de ser idealmente amada, a magra consolação
- Valeu a pena casar-me pelos filhos que tive
e a possibilidade de se aproximar de um rapaz tão romântico, tão sensível, e que, segundo o fotógrafo, se desfez em desculpas aflitas. Como seria ele, não é, mãe?

Vejo-te assim, ó asa de andorinha,
Com ar de infanta que perdeu a aia
Envolta nessa luz que te acarinha
Na luz que desfalece e que desmaia

Sabe, não se preocupe, continua a ser a pastorinha de vitral e bruma, a palpar o caminho quase cega, ou numa cadeira da sua saleta, à espera de nada. Ou, então, na esperança oculta que o estudante que comprou o retrato na loja, lhe chame, ao ouvido, pastorinha de vitral e bruma e os seus olhos tornem a ver, os membros difíceis se desatem, não precise de remédios nem de médicos para nada e, envolta numa luz que a acarinha, se dirija não sei para que sítio, onde um júbilo sem manchas a espera.
De uma das últimas vezes perguntei
- Como se sente?
uma espera difícil
- A desfazer-me aos bocados
e, palavra de honra, tive ganas de ser eu o estudante, rodeado de alicornes a pastarem neve na montanha azul: nesse caso, percebe, podia pegar-lhe na mão, nessa mão que é minha entornava a sua graça sobre mim e partíamos os dois

Linda menina ingénua de Velásquez
A flutuar num mar de seda e renda

sem tocarmos no chão, desprovidos de peso, no sentido do lugar onde está o seu pai, a sua mãe, os seus manos, tudo aquilo que desejou e não teve, que quis e não lhe foi dado. Claro que sou apenas seu filho: mas talvez que se lhe doer a boca de me dar beijos valha a pena.
Guardo alguns no bolso para o caso do rapaz que comprou a fotografia aparecer. Então entrego-lhos
- A minha mãe manda isto
e aposto que os seus olhos, por um momento que seja, o conseguiraõ ver, enquanto eu fico, um pouco à parte, tão comovido com a sua beleza, a repetir não para si, para mim

Se eu te pintasse posta na tardinha
Pintava-te num fundo cor de olaia

e nunca mais ninguém a torna triste.


Crónica de António Lobo Antunes, publicada na revista Visão do passado dia 4 de Março.

6 comentários:

zmsantos disse...

Metade de nós, que sabemos que perderemos um dia.
Um beijo às nossas mães e aos seus filhos, que nasceram neste dia.

Maria disse...

Dá-lhe beijos até te doer a boca!

E beijos ao filho que nasceu no dia de hoje!

Ana disse...

É sempre estranho que meras palavras possam comover para além da beleza que encerram, pela doçura que transportam.
Bjs

Patricia Parreira disse...

Dá-lhe muitos, muitos beijos. Nunca queremos pensar no dia em que nos vão faltar.
Muitos Parabéns primo!!!

Bejos

Patricia

Marta Manta disse...

Parabéns. Felicidades.
Mil beijos cá de casa.

Leticia Gabian disse...

Que coisa mais linda...!