1 de janeiro de 2010

Ponto de Citação - Ar fresco

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"Eu respeito muito os percursos de cada um. Cada pessoa transporta uma história que é sagrada. Gosto de a reconhecer como é."

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Quando é que Ele se tornou obrigatório? Obrigatório como respirar?
Uma amizade não começa no momento em que é explicitada. Para chegar a ser explicitada tem primeiro de crescer em silêncio nos corações, de se construir lenta e misteriosamente em múltiplos encontros, de se consolidar num tráfico íntimo de sinais... Há uma frase de Blanchot que explica deste modo a forma como todos experimentamos a amizade: "Já éramos amigos e não sabíamos." A amizade com Deus é a mesma coisa. Quando é que Ele se tornou obrigatório? Tenho de responder, para ser verdadeiro: muito antes que eu o soubesse. Vêm-me à cabeça aqueles versos de Mário Cesariny: "Tu estás em mim como eu estive no berço./Como a árvore sob a sua crosta./Como o navio no fundo do mar."

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O que determina antes de mais a sua relação com Ele? No seu caso particular, pessoal, é possível definir os laços que tecem essa espécie de dependência?
Há uma oração que aprendi, e dizem- -me que se reza em Taizé: "Senhor, estou aqui à espera de nada." Com o tempo, esta oração tem-se tornado a paisagem de fundo do meu caminho espiritual. Acho que posso dizer que vivo na dependência de Deus. Jesus Cristo é o objecto da minha fé. Com todas as minhas falhas e incertezas, procuro que a sua humanidade se torne inspiração para a minha. Mas peço a Deus a liberdade e a gratuidade necessárias ao amor. Eu não creio para que Deus me facilite a vida ou a resolva por mim. Os místicos ensinam que "a rosa é sem porquê".

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Escreve todos os dias? Escreve sempre?
Acho que o sentido por excelência de um escritor é o ouvido. E, mesmo se não escrevo todos os dias, estou sempre atento à conversa humana, às palavras, ao seu ritmo, à sua temperatura. Estou sempre a tomar apontamentos, pequenas anotações. E daí parto para outras associações, preencho lacunas, continuo frases. Essa é a minha oficina.

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Hoje a Igreja tem uma consciência acrescida de que o campo da cultura é um espaço privilegiado de procura e construção de sentido. Sabe como numa época que investe tanto na técnica há um défice grave de humanismo.

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Qual é hoje o maior desafio que se depara aos cristãos? Que lhes dê asas, mobilizando-lhes a vontade e a convicção nestes tempos que considerou de "hesitação e descrédito"?
O maior desafio é o de viverem na confiança ("Eu estarei convosco todos os dias, até ao fim dos tempos") e no amor ("Deus amou de tal maneira o mundo, que lhe deu o seu próprio Filho"). Mas depois é como dizia Santo Agostinho: «Ama e faz o que quiseres.»

O país também vive dias assim, de "hesitação e descrédito". Portugal aflige-o?
Olho-o com esperança e procuro contagiar outros. Temos de perder o medo.

"José Tolentino Mendonça, 44 anos, sacerdote, poeta e intelectual fecundíssimo, tem o raro dom de interpelar, tocar, marcar. Para "servir" para lá de credos, idades e vidas. "

Excerto da entrevista concedida ao jornal i.

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