Praticamente desde que nasci a minha madrinha depositava umas coroas em meu nome no Montepio. Volta e meia acenava-me com a caderneta de longe, prevenia
- Aos dezoito anos tens aqui um dinheirinho
e aos dezoito anos, eu que imaginava milhões e me imaginava a mim transformado em nababo, tinha ali um dinheirinho de facto. E como não dava para uma volta ao mundo nem para um iate ancorado na Riviera, comprei os livros todos de Miguel Torga.
(...)
O seu amor por Portugal, torturado e imenso, parecido com o meu. Aprendi com ele a gostar ainda mais do meu País, e continuo a zangar-me quando lhe chamam pequeno e periférico, dado que para mim é o centro do Mundo e um motivo permanente de orgulho. Há anos, em Paris, cheio de febre num quarto de hotel, por causa de uma infecção a que nenhum antibiótico valia, o meu único pensamento era
- Quero morrer na minha terra
e continuo a querer viver e morrer nela. Miguel Torga, que falou de Portugal como poucos, com infinito orgulho e infinita piedade, ajudou-me a conhecê-lo e a não me sentir culpado pelo complicado relacionamento de indignada paixão que com ele tenho. E agora, que me traduzem por todo o sítio, compreendo melhor que é para os portugueses que escrevo e que me acho, cada vez mais, no meio de nós e connosco. Isto que digo, Miguel Torga o disse a seu modo, antes de mim.
(…)
É raro encontrar um escritor de prosa tão masculina e no entanto capaz de um jeito maternal a transbordar de emoção, contida à rédea curta pela força do pulso, no qual se percebe uma pessoa em carne viva, de sofrimento todo embrulhado em ironia e pudor. O que nos deixou pode ser muito bem, um bom, ou menos bom mas é inalteravelmente sério e sem trapaças o que é mais raro que se julga.
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Tenho saudades do entusiasmo com que o li em adolescente, o copiei, o imitei, o invejei na busca, eternamente adiada, da minha própria voz, que tão tarde chegou. Claro que copiei, imitei e invejei muitos outros.
O meu receio agora é copiar, invejar e imitar António Lobo Antunes embora isso sejam contas de outro rosário. Porém, acho que foi à custa de os copiar, imitar e invejar que me libertei deles e me prendi a mim, sem nada publicar, sem sequer dizer que escrevia, num desespero e numa raiva que apenas quem está por dentro destas coisas pode entender.
(…)
Lembrei-me neste momento de lhe ler no Diário, a propósito do autor do Messias, que de vez em quando Deus encontra homens à sua medida. As palavras são estas, mais coisa menos coisa. Miguel Torga podia perfeitamente estar a falar de si mesmo porque foi um homem assim. A sua doença tocou-me, a sua morte tocou-me, as últimas páginas que compôs para o Diário são de uma desgarradora aflição, a desgarradora aflição de um homem vertical e corajoso, que tanto de si mesmo nos entregou a todos. Sei bem o que é o cancro, sei bem que, embora matando-o, não o venceu. Ninguém vence uma fraga. Ninguém vence um negrilho. E ninguém derruba um homem que, desde o início, fez corpo com a terra, e lançou tão fortes raízes no interior de nós.
Excertos da crónica de António Lobo Antunes, publicada na revista Visão de 20 de Setembro de 2007.
25 de setembro de 2007
Miguel Torga
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