25 de setembro de 2007

Miguel Torga

Praticamente desde que nasci a minha madrinha depositava umas coroas em meu nome no Montepio. Volta e meia acenava-me com a caderneta de longe, prevenia
- Aos dezoito anos tens aqui um dinheirinho
e aos dezoito anos, eu que imaginava milhões e me imaginava a mim transformado em nababo, tinha ali um dinheirinho de facto. E como não dava para uma volta ao mundo nem para um iate ancorado na Riviera, comprei os livros todos de Miguel Torga.
(...)
O seu amor por Portugal, torturado e imenso, parecido com o meu. Aprendi com ele a gostar ainda mais do meu País, e continuo a zangar-me quando lhe chamam pequeno e periférico, dado que para mim é o centro do Mundo e um motivo permanente de orgulho. Há anos, em Paris, cheio de febre num quarto de hotel, por causa de uma infecção a que nenhum antibiótico valia, o meu único pensamento era
- Quero morrer na minha terra
e continuo a querer viver e morrer nela. Miguel Torga, que falou de Portugal como poucos, com infinito orgulho e infinita piedade, ajudou-me a conhecê-lo e a não me sentir culpado pelo complicado relacionamento de indignada paixão que com ele tenho. E agora, que me traduzem por todo o sítio, compreendo melhor que é para os portugueses que escrevo e que me acho, cada vez mais, no meio de nós e connosco. Isto que digo, Miguel Torga o disse a seu modo, antes de mim.
(…)
É raro encontrar um escritor de prosa tão masculina e no entanto capaz de um jeito maternal a transbordar de emoção, contida à rédea curta pela força do pulso, no qual se percebe uma pessoa em carne viva, de sofrimento todo embrulhado em ironia e pudor. O que nos deixou pode ser muito bem, um bom, ou menos bom mas é inalteravelmente sério e sem trapaças o que é mais raro que se julga.
(…)
Tenho saudades do entusiasmo com que o li em adolescente, o copiei, o imitei, o invejei na busca, eternamente adiada, da minha própria voz, que tão tarde chegou. Claro que copiei, imitei e invejei muitos outros.
O meu receio agora é copiar, invejar e imitar António Lobo Antunes embora isso sejam contas de outro rosário. Porém, acho que foi à custa de os copiar, imitar e invejar que me libertei deles e me prendi a mim, sem nada publicar, sem sequer dizer que escrevia, num desespero e numa raiva que apenas quem está por dentro destas coisas pode entender.
(…)
Lembrei-me neste momento de lhe ler no Diário, a propósito do autor do Messias, que de vez em quando Deus encontra homens à sua medida. As palavras são estas, mais coisa menos coisa. Miguel Torga podia perfeitamente estar a falar de si mesmo porque foi um homem assim. A sua doença tocou-me, a sua morte tocou-me, as últimas páginas que compôs para o Diário são de uma desgarradora aflição, a desgarradora aflição de um homem vertical e corajoso, que tanto de si mesmo nos entregou a todos. Sei bem o que é o cancro, sei bem que, embora matando-o, não o venceu. Ninguém vence uma fraga. Ninguém vence um negrilho. E ninguém derruba um homem que, desde o início, fez corpo com a terra, e lançou tão fortes raízes no interior de nós.

Excertos da crónica de António Lobo Antunes, publicada na revista Visão de 20 de Setembro de 2007.

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