26 de junho de 2007

Espelhos (V)

«Por todo o lado vejo gente afogada em rotina, queixando-se dela e nela se abrigando. Temem a diferença como eu o escuro da minha casa de criança»

«Mas há silêncios confortáveis, de uma alegria tão suave que lhe poderíamos chamar paz. Quando? Olha, depois do… E se a tua mãe franze o sobrolho? Pronto, digo – depois do amor. Físico. Está bem, sexo. Um cansaço divertido por espantado, o que aconteceu para assim fugirmos por segundos ou horas ao cinzento? Que Deus nos enviou a mulher respirando suave, cabeça apoiada no ombro? Ou homem…Gaspar, tens razão, decidimos pelos outros sem nos apercebermos. Quem amarás tu um dia? E porque será importante o sexo desse alguém? Quantos milénios serão necessários para amarmos pessoas e não apêndices dos órgãos sexuais? Não verei esse mundo, mas desejo-o para ti.»

«Dizia eu que tamanha idealização não permite o saltitar constante, irresponsável e divertido, típico dos valdevinos. Ele prolonga as relações, confunde roturas de meses com zangas passageiras, toma os silêncios por apelos e os insultos por declarações de amor clandestino e furioso. Não procura a tal depois daquela, obstina-se em transformar aquela na tal. Pode imaginar os catastróficos resultados. E curioso, devo admiti-lo. Um hipocondríaco inveterado vivendo a sua vida amorosa como se fosse eterno…»

«Se atacasse outro romance não escreveria na primeira pessoa, quero mais recuo. Sabes, uma das dificuldades com que me defronto é iniciar um texto longo. Há na minha vida escrita algo de legenda. (…) Quando escrevo, não me sinto a contar uma história, percebes? Fecho os olhos e vejo cenas soltas, as palavras limitam-se a descrevê-las, como legendas num filme.»

« (…) é preciso entremear a aquisição de conhecimentos com espaços para o cultivo da alma, já deves ter percebido que não são sinónimos.»

«E eu preso de um nervoso miudinho, quando gabamos cenários queridos a gente não menos querida surge um medo áspero do tira-teimas, “e se não gosta como eu?”»

«Falo do ódio adulto. Por todos decretado de mau gosto, e contudo bem mais popular do que gostamos de admitir. Afasta o pânico se o sentires, não te transformaste num monstro. Mas vigia-o. Tem a estranha capacidade de nos fazer sentir mais seguro do que o amor. Parece homogéneo, à prova de hesitações, cortante e límpido. E por isso combustível adequado, se a vida não parece prometedora. É falso. O ódio guarda em si, lá no fundo, uma dependência do outro que nos sufoca. Não odeies, Gaspar. Afasta pessoas da tua vida, se for necessário. Descobrirás como dói, se ainda as amares. Mas não acrescentes o ódio à lista das tuas prisões.»

Júlio Machado Vaz em "O tempo dos espelhos"

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