6 de julho de 2005

Respostas

"É mesmo mau feitio. Independentemente da tua opinião acerca da leitura da cada um, cada qual compra o que quer e lê o que bem lhe apetecer. Se não fosse assim as pessoas eram todas iguais e gostavam todas das mesmas coisas."
Esta foi a resposta da Filipa ao texto que publiquei com o título "24 Horas em Portugal".
É um facto que cada um compra e lê o que bem lhe apetece. Nunca questionei isso. A fantástica conquista do 25 de Abril foi precisamente a liberdade, a de escolha incluída. Mas o que muita gente esquece é que para além de nos ter oferecido o direito de escolher também nos trouxe a responsabilidade do poder de decisão. No tempo da censura ninguém podia criticar os hábitos de leitura dos portugueses. Em primeiro lugar porque nesse tempo pura e simplesmente não se podia criticar. Em segundo porque só se podia ler os jornais e as notícias autorizadas. Logo, eram outros que decidiam por nós. Hoje não é assim. Existem milhentas publicações, e nós podemos escolher a que queremos. E podemos também criticar as escolhas que os outros fazem.
E eu critico porque entendo que tudo o que fazemos na vida serve para nos melhorar ou para nos estagnar. Tudo o que dizemos, ouvimos, lemos, fazemos e vemos infuencia o que somos e a nossa capacidade de melhorar nos mais diferentes aspectos da nossa vida, quer como seres humanos, quer como profissionais, quer como indivíduos.
Não vou dizer que nunca espreitei as capas das revistas e dos jornais sensacionalistas, que nunca vi bocados de Quintas e Bigs ou que não sei o que é o Fiel ou Infiel ou quem é o Castelo Branco. Virar a cara ou mudar de canal apressadamente é cair num radicalismo que em nada favorece o bom senso (ver http://aburranascouves.blogspot.com).
Aliás, penso mesmo que o instinto de todos nós enquanto seres humanos é parar para ver e gostar, porque faz parte da nossa natureza errante. O que eu acredito, convictamente, é que ao cedermos à tentação estaremos a exercitar o nosso lado mesquinho, preguiçoso e intriguista. Quando perdemos tempo a espreitar a vida alheia não estamos a viver a nossa, não estamos a evoluir, não estamos a enriquecer a nossa experiência pessoal.
Isto pode parecer um exagero, mas o que é facto é que cada vez mais se consome revistas e jornais sensacionalistas, os programas de televisão com maior audiência são os que sabemos, e cada vez que acontece um acidente o trânsito acumula-se nos dois sentidos (quando o acidente por norma só acontece num deles), cada vez mais as pessoas se queixam de maus ambientes no trabalho, cada vez mais as pessoas se endividam porque compram o que podem mas querem, cada vez mais as crianças crescem inadaptadas, rebeldes e a queixarem-se de falta de atenção dos pais, cada vez mais as pessoas entram em depressão e "encharcam-se" de anti-depressivos, cada vez vão aparecendo mais casos de solidão aguda e, como eu tenho mau feitio e esta relação causa-efeito é uma pura alucinação, esqueçamos o assunto e culpemos os malandros do governo que a culpa do estado em que o país está é única e exclusivamente deles que só querem tacho.
Minha cara Filipa, dizes que não temos que ser todos iguais, mas andamos todos a ler os mesmos sensacionalismos, a ver os mesmos programas, a ouvir a mesma rádio e a consumir a mesma música. No fundo o diferente sou eu, que me recuso a ouvir rádios que só passam musica dos anos 80, que me recuso a ouvir maioritariamente musica anglo-americana, que me recuso a ler jornais que apelam às minhas fraquezas humanas, que me recuso a ver programas de televisão que querem engrandecer pessoas vulgares sem nada para mostrar, que me recuso a criar hábitos alimentares importados e que visam a dependência e a decadência física, que me recuso a pensar pela cabeça dos outros e por isso esforço-me por ler, por analisar e por evoluir.
Não temos todos que ser sobredotados nem génios, mas também não temos que ser ignorantes e minimalistas. Não temos que ser patriotas e nacionalistas mas também não temos que perder a nossa identidade e esquecer um longo e rico passado. Não temos que ser aves raras mas também não estamos condenados a ser vulgares e formatados!
Rogério Charraz

1 comentário:

A Burra Nas Couves disse...

É que desde o 25 de Abril não houve ainda ninguém que explicasse ao pessoal que, assim como o bom-senso é condição essencial para existir a sabedoria, também a responsabilidade é condição essencial para existir a liberdade. De qualquer modo, agradeço imensamente a referência à Burra. És um querido! Quanto à duvida entre "postagem", "post-it" ou "comentário, deixo-te a sugestão indicada pelo nosso vernáculo, que nomeia algo do género como "posta..............de pescada". Outra coisa ainda, o acumular do trânsito nos dois sentidos, assim como a apetência por outras horribilidades, tem berço no fascínio humano pelo horrível, como maneira de nos sentirmos melhor connosco próprios, ou porque não nos tocou, ou porque nos sentimos superiores a....de qualquer maneira a cultura da horribilidade tem um alto patrocínio católico, basta entrar numa igreja, para observar como é exposto o sacrifício de uma data de santos e do próprio J.C., tudo com imenso sangue à mistura. Ora senão, convido-te a uma rápida leitura a um soneto brilhante do nosso Guerra Junqueiro, integrado no livro "A Velhice do Padre Eterno", e que lhe valeu na altura uma excomunhão para toda a vida (quisera eu a mesma sorte): "PARASITAS




No meio duma feira, uns poucos de palhaços
Andavam a mostrar, em cima dum jumento
Um aborto infeliz, sem mãos, sem pés, sem braços,
Aborto que lhes dava um grande rendimento.


Os magros histriões, hipócritas, devassos,
Exploravam assim a flor do sentimento,
E o monstro arregalava os grandes olhos baços,
Uns olhos sem calor e sem entendimento.


E toda a gente deu esmola aos tais ciganos:
Deram esmola até mendigos quase nus.
E eu, ao ver este quadro, apóstolos romanos,


Eu lembrei-me de vós, funâmbulos da Cruz,
Que andais pelo universo há mil e tantos anos,
Exibindo, explorando o corpo de Jesus. "