15 de julho de 2005

António Lobo Antunes

Não tenho dúvidas que António Lobo Antunes merece o Prémio Nobel da Literatura. Já tenho mais dúvidas se ele gostava de o receber. Mas que o homem é brilhante lá isso é. Deixo-vos algumas passagens da crónica publicada na Visão da semana passada. A isto eu chamo bom humor.
Dizem na telefonia do automóvel que morreu o dr. Corino de Andrade: era um dos últimos amigos vivos do meu pai.

(...) O dr. Corino era contra o dr. Salazar, que tinha a fotografia na escola, ao lado do quadro preto, e nos salvara a todos não sei bem de quê.
(...) o dr. Corino e o meu pai discutiam a paramiloidose, uma doença que ninguém das minhas relações apanhara, que o dr. Corino descobriu e sobre a qual o meu pai escreveu inúmeros trabalhos clínicos e anatomopatológicos, acompanhados de fotografias de nervos ou assim, coisas do género da Alice no País das Maravilhas, ou seja, incompreensíveis e sem piada nenhuma.
(...) e numa altura ou duas, à margem da tal paramiloidose, e a propósito do dr. Salazar que nos salvara, o dr. Corino articulou a palavra ditadura, que eu pensava que fosse uma marca de placa dentária, como aquelas que as tias do Brasil usavam e quase lhes caíam ao falar: as ditaduras delas precisavam de ser atarrachadas às gengivas e, se calhar, o dr. Corino visitara-as: a minha tia Maria João, por exemplo, engoliu a sua, e a tribo obrigou-a a fazer cocó no bacio, dias seguidos, até a ditadura tombar no fundo da loiça
- (clic)
para alívio geral. Então lavaram-na e puseram-na de novo na boca
- Encaixe lá isso, tia.
Resplandecente de molares restaurada, a tia Maria João voltou a exprimir-se de uma maneira decente. Sem a ditadura comunicava numa gramática cheia de vogais e ditongos aspirados que devia ser o inglês da mulher do dr. Corino. Graças aos molares lavadinhos perdeu para sempre o dialecto dos cámones, lugar onde não existiam ditaduras nas gengivas.

(…) Mandava abraços para o meu pai que não abraçava quem quer que fosse. Transmitia-lhe os abraços do dr. Corino e ele, a afundar-se num livro.
- Hum.
Que, no caso do meu pai, significava uma espécie de ternura embaraçada. Portanto ao dizer na telefonia do automóvel que morreu o dr. Corino de Andrade a minha reacção imediata, automática, foi
- Hume como sou filho do meu pai isso significa, igualmente, uma espécie de ternura embaraçada.
Rogério Charraz

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