1 de junho de 2005

Palavras para quê...

Ontem decidi aderir ao passatempo preferido da população mundial. Sentei o meu real assento no sofá, acompanhado da esposa, e toca de ver televisão. Enquanto esperávamos pela novela de eleição da patroa, fixámos a nossa atenção no concurso da RTP1 chamado "Um contra todos". O concorrente tinha 19 anos. Tinha no momento quatro adversários. A pergunta era:
Qual o autor do poema "Trova do vento que passa"?
As opções:
a) Ary dos Santos
b) Manuel Alegre
c) José Sócrates
Quando mudei o canal, já o programa decorria. O rapaz decide então bloquear a resposta a). O apresentador pergunta-lhe o porquê. O rapaz argumenta - o José Sócrates é político, portanto não deve ser. O Manuel Alegre também é político além de escritor, também não me parece. O Ary dos Santos penso que é brasileiro, deve ser ele.
O apresentador ficou um pouco furioso. Indicou que a resposta estava naturalmente errada e perguntou ao concorrente quantos adversários é que ele achava que tinham acertado. Os ditos quatro adversários eram todos mais velhos que o concorrente. Nenhum deles acertou na resposta.
Agora eu (que nasci em 1978) poderia vos falar da importância deste poema e da canção do Adriano Correia do Oliveira no contexto da luta pela liberdade. Poderia lamentar a falta de interesse dos portugueses pela sua história, pela sua cultura, pela sua identidade. Poderia vos explicar que é por estas e por outras que a música que a mim me interessa é uma espécie em vias de extinção. Mas, aqui entre nós, para quê?
Deixo-vos o poema, para aqueles que não conhecem:
Trova do vento que passa
Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.
Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.
Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.
Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.
Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio -- é tudo o que tem
quem vive na servidão.
Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.
E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.
Vi minha pátria na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.
Vi navios a partir
(minha pátria à flor das águas)
vi minha pátria florir
(verdes folhas verdes mágoas).
Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.
E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.
Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.
E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.
Quatro folhas tem o trevo
liberdade quatro sílabas.
Não sabem ler é verdade
aqueles pra quem eu escrevo.
Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.
Mesmo na noite mais triste
em tempo de sevidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.
Manuel Alegre

Rogério Charraz


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